terça-feira, 31 de maio de 2011


Tim e Tom 

 
Eder Sallez - Tim e Tom. Giz Pastel Sobre Papel. 28, 5 x 20,5. 2011 



I

Tom era o mais velho e tinha ido para um grande baile com um antigo amigo muito querido. Essas terras da capital de seu reino sempre o fascinavam, eram as possibilidades, as expectativas, essa vontade ferrenha de conhecer o novo. Esse pequeno grande garoto, deste mundo mágico, que pegava seu pássaro mágico e aterrissava placidamente na principal cidade do reino.

Aquela comemoração toda não era tão convidativa, havia algo de estranho em tudo aquilo, algumas pessoas não eram as mesmas que ele estava acostumado, chegam o tempo todo nele, como se soubessem o que ele carregava dentro de si.

A semente da flor poente, o próprio Tom tinha se esquecido disso. Era presente de um antigo e poderoso mago, chamado Tanagus, quando entregou ao garoto a semente ele disse “ quando a flor surgir ela te transformará no garoto mais poderoso, forte e corajoso de todo o reino, mas lembre-se, ela não floresce sozinha, ela precisa de uma outra pessoa com a alma tão pura quanto a sua, e quando encontrares você deverá deixar a flor com esta pessoa, só assim ela deixará o poder fluir não só para você mas para o escolhido, a melhor dádiva é aquela que podemos compartilhar”.

A semente estava dentro de uma bolsinha, dourada e com detalhes em fios de ouro, lacrada por uma fita de seda azul, ficava presa a uma corrente que Tom carrega no pescoço, era do tamanho de um pingente.

Ele caminhou por essa festa, por essa sucessão de pessoas desmedidas que sentiam que ele possuía a semente da flor poente. Seu amigo tinha se perdido, conversando com outros garotos e garotas, enquanto aqueles ladrões sorrateiros, com sorrisos vis e cruéis lhe causavam medo. Que tipo de festa era essa que reunia homens de bem ao lado de ladrões e trapaceiros? A capital do reino tinha seus estranhos hábitos. Quando estava imerso em seus pensamentos, um dos ladrões, o mais esperto, viu a bolsinha com a semente, reconheceu na hora do que se tratava, e com todas as forças tentou pegá-la. “Você não é digno de te-la, somente as pessoas da capital do reino é que podem possuir tal objeto, e ele será meu, queira você ou não”.

Tom assustou-se, seu coração parecia saltar pela boca, estava com medo, toda forma assustadora do baile estava ali solidificado neste ladrão que tentava lhe tirar o querido presente que tinha. Saiu andando depressa por um e outro, desviando dos olhares quando esbarrou em outro garoto, que aparentemente estava perdido, assim como ele, mas quando olhos nos olhos do menino, sabia que não era um dos ladrões, ou aprendizes, já que os pequenos garotos também carregam um potencial para o indevido.
Nunca conseguiu explicar aquela confiança súbita que sentiu no garoto, que olhou fortemente nos olhos de Tom e disse “Venha, eu posso ajudar você. Esse mesmo ladrão já tentou me roubar coisas preciosas.” Foram para um canto do salão de festas, onde havia uma vista para o infinito oceano, onde a lua cheia emitia sua luz diáfana sobre as poltronas e as plantas do local.

“Chamo-me Tim, e você quem é? Sei que não é desta cidade, posso ver essas coisas em você”. Tom sorriu e disse “Sou Tom, venho de uma cidade próxima à capital do Reino, vim para esta festa para me encontrar com um amigo muito querido irá fazer uma longa viagem, para um reino tão mágico quanto este, porém muito mais distante”. “Mas não era por isso que aquele ladrão asqueroso queria lhe atacar, não é mesmo, qual a razão? Pode confiar em mim”. Tom respirou forte, neste instante a semente da flor poente sacudiu dentro daquela bosinha dourada, em todos aqueles anos que vinha guardando aquele tesouro nunca isso tinha acontecido, ela estava pedindo para germinar? Não havia outra explicação. Tom sabia que quando a flor surgisse, ela lhe traria poderes então ele vivia segurando firme aquele desejo de ser forte e corajoso, o mais valente garoto de sua cidade, que poderia derrotar os gigantes, punir as bruxas e matar os dragões, pois sua cidade era pequena, mas recheada de perigos mortais. Ser forte, ser reconhecido.

“Eu carrego uma semente de flor poente, elas são muito raras e poderosas”. Respondeu quase subitamente, entregando-se àquela confiança súbita que desenvolveu para com Tim. “Eu sou mais novo que você, mas já vi algumas, eu mesmo pensava que eram lendas. Elas são muito raras e valiosas, principalmente aqui no reino. Devemos sair daqui o quanto antes. Você está no lugar errado Tom. Encontre seu amigo, vou te ajudar a escapar daqui”.

Tom não precisou se esforçar para encontrar seu amigo, em pouco tempo ele passou correndo por Tom e Tim, estava assustado e preocupado. “Tom, me desculpe por deixá-lo sozinho, uma amiga nossa está com sérios problemas, foi atacada por uma bruxa, não deveríamos ter vindo a esta festa. Estou indo ajudá-la.” O amigo de Tom saiu pela grande porta do salão do reino, pegou sua carruagem e foi realizar um ato heróico.

“Tenho que voltar para casa, mas este lugar me desgastou. Minha Água Gigante está muito distante daqui”. Disse Tom para Tim. “Já disse que posso resolver tudo, não é porque sou mais novo que você que não posso ser tão esperto quanto”. Ao acabar de pronunciar essas palavras, Tim guiou Tom para fora do local, alguns ladrões e malfeitores ainda estavam na saída, alguns ainda olhavam para ele, cientes de que havia algo que pudessem roubar dele, mas Tim os encarava com tanta força no olhar, aquele olhar era capaz de domar o mais malvado dos dragões, ou de cativar o mais belo dos unicórnios.

Tim murmurou umas palavras estranhas, seria mágica? Seria ele aprendiz de mago? Tom nunca saberia, mas em pouco tempo havia uma carruagem. “Onde está sua Águia Gigante?” “Próxima ao Porto do Cisne”  “Magnífico, minha moradia fica a caminho, posso pedir ao senhor que conduz os cavalos para lhe deixar lá, estarás seguro”.

Quando os dois garotos entraram, a semente ganhou um brilho novo, parecia cegar a ambos. Algo mudou dentro de Tom, ele captou a alma pura de Tim, ele tinha o potencial para cultivar a pequenina semente, estava certo disso.

Tom tirou a fita azul que lacrava a bolsinha dourada, abriu cuidadosamente, e pegou a semente nas mãos, o brilho era ao mesmo tempo de todas as cores. “Que lindo” exclamou Tim maravilhado por tamanha beleza. “É sua, meu amigo, o mago Tanagus, disse que ela só germinaria quando eu encontrasse uma pessoa tomada por bondade”.  “Mas eu não posso aceitar, é muita honra”. “A semente tem certa vontade, nem todos os acontecimentos dependem de decisões pensadas. É sua, por favo, pegue-a”.  Tim pegou cuidadosamente no tesouro que era de seu amigo, e agora se tornava seu.  “É linda, é reconfortante. Serei eu capaz de fazê-la brotar? Não sei se posso”.  “Eu preciso de força para enfrentar todos os perigos que me rodeiam, a flor me trará isso e também te dará forças, eu garanto” Tim não teve outra escolha e aceitou o presente de Tom.

Em pouco tempo a carruagem passou pela casa de Tim. “Essa é minha modesta moradia” Tom olhou para a casa, até mesmo nela havia um brilho bonito, da mesma forma que ele via nos olhos de Tim, aquela pureza, aquela vontade de fazer o bem. “Quando estiver em apuros no reino, sabe onde me procurar”. Tim tirou então de seu bolso dois pequenos amuletos, pedrinhas negras muito bonitas e brilhosas.  Pegou uma e colocou na mão de Tom. “Essas são pedras da comunicação, por elas não perderemos contato, e você saberá como a sua flor está. Todos os dias, na última hora de sol do dia, você deixará que os raios batam nela, e assim minha imagem aparecerá para você, e seremos capazes de nos comunicar. Este também é um presente que eu deveria compartilhar com alguém. Cuide-se Tom, já que a necessidade de viver aventuras não nos esconde do perigo, sei que isso de alguma forma rege seu viver, Tom. Tome cuidado e retorne em paz”.

Abraçaram-se demoradamente e Tom seguiu para o Porto do Cisne, onde sua Águia Gigante estava preocupada e lhe esperando. “Tom, seu levado, se não houve uma proibição para nós águias de ir até os salões do reino, eu já teria ido atrás de você”. Tom sorriu e disse para a amiga “não se preocupe, estou bem e ainda encontrei alguém para cuidar da semente da flor poente”. “Isto é fabuloso, Tanagus ficará satisfeito por você ter descoberto” Disse a Águia Gigante. “E eu serei o mais forte guerreiro de minha cidade, vamos voar de volta minha amiga”.

A águia ergueu suas imensas asas, o movimento delas movendo galhos e flores. O vento batia suave no rosto de Tom e em seu sorriso. O sol nascia no mar, as silhuetas do garoto de águia se perdiam no horizonte sul, em direção às montanhas.  




II

Assim se passaram os dias e a comunicação entre Tim e Tom era freqüente. Todos os dias à tarde Tom colocava a pedra negra sobre os raios de sol, e logo na outra cidade a pedra negra de Tim brilhava e um poderia ver a imagem do outro.

“Ela está crescendo, Tom! Você precisava ver! Tenho que me render, você estava certo, eu posso cuidar para que ela cresça e floresça”.

Nessa hora Tom abriu um largo sorriso.

A força dentro de Tom passou a crescer, de forma imprevista. Certo dia ela foi capaz de capturar um gigante que por maldade estava pisando nas videiras dos camponeses. Tom preparou uma armadilha, colocando uma corda de um canto a outro, presa das rochas, estava bem baixa, o gigante passava por ali todos os dias e nem ia perceber.  E não deu outra, em pouco tempo o gigante de quase quatro metros caia e batia a cabeça no chão, sem tardar Tom amarrou-o bem forte. Todos do vilarejo da cidade o aplaudiram, ele sentiu tão orgulhoso disso e pensou “graças à flor poente e a Tim”.
“Tom, Tom, tem um lindo botão, ele está todo tímido e é branco”. Exclamou Tim todo alegre para o amigo “é branco, minha cor favorita, toda vez que chego próximo a ele fico parado, dominado por uma força que me traz paz”. Então Tom contou para o amigo que tinha derrotado um dos gigantes malvados. “Deve ser por isso Tom, a flor está surgindo e com elas suas forças, em breve será um dos maiores heróis que esta terra já viu”.

Dois dias depois, duas criancinhas foram aprisionadas por uma bruxa que morava no topo de uma das montanhas. Tom foi até o castelo da bruxa, munido de seu pequeno punhal, esperou paciente até anoitecer, quando a mulher malvada saiu voando em sua vassoura, ele entrou dentro, libertou as crianças que ainda não haviam sido enfeitiçadas para serem escravos. E não foi apenas isso, ele entrou até a sala de jantar, e em cada refeição feita por seus escravos, ele colocou gotas de uma poção que faria a bruxa dormir por muitos e muitos anos, essa poção dada por Tamagus, já que neste reino os magos e bruxas não podiam se confrontar diretamente. Sua cidade estava livre de mais um dos perigos mortais.

No outro dia, Tim lhe disse que a flor tinha aberto e era linda, mas que já não era mais branca, como aparentava, e sim amarela. “Foi por isso então, ontem eu consegui derrotar a bruxa que mora nas montanhas” Contou Tom para Tim, e ambos comemoraram a vitória de Tom. “Tem alguma coisa acontecendo comigo também, Tim. Eu sinto-me mais forte e corajoso, sinto necessidade de lidar com perigos, iguais a este que você vem combatendo”. “Você pode se tornar um herói também, basta você querer e também usar as boas energias da flor”. “Eu não tenho capacidade pra isso, não sou tão bom quanto você, nunca vou chegar a fazer um ato heróico parecido”. “Se você enxerga em mim sabedoria e valentia, não há como não você negar o bem e o potencial que vejo em sua pessoa. Um coração puro sabe reconhecer outro”.

Tim ficou infinitamente feliz com as palavras sábias do amigo, ele sentiu neste instante uma força de vontade imensa, passou a ter Tom com um dos exemplos a seguir.
Passaram mais alguns dias e em quase todos eles se falavam. A flor ia mudando de cor, passou do amarelo, para o laranja, depois para o vermelho, rosa, e estava se tornando roxa. Tom estava realizando pequenos feitos, ele dizia pra si mesmo que estava preparando para realizar o maior feito, o de lutar contra o Dragão Vermelho.

“Mas antes, Tom, você tem que voltar aqui, tem que ver como esta sua flor, ela está linda, tenho cuidado dela todos os dias, pacientemente”.  

“Você está dizendo que devo lhe visitar?” Sim por que não? Não foi você mesmo que disse que eu tenho potencial para me tornar um herói tão bom quanto? Essa força que a flor também me concedeu está na hora de ser direcionada. Espero-te, pode ficar em minha casa”.

Tom sentiu-se imensamente feliz, antes ele era treinado e agora passaria a guiar alguém nesta vida heróica. Não era responsabilidade demais para um garoto ajudando outro mais novo a enfrentar os perigos e aventuras daquele reino distante?

Mesmo com todas as intempéries, pois uma chuva torrencial havia atingido o reino por dias, ele e sua Águia Gigante resolveram ir à cidade capital, mais uma vez. A curiosidade em saber como estava a flor poente era maior do que o peso da responsabilidade de treinar alguém.

A Águia Gigante posou no mesmo local de outrora, pois a casa de Tim ficava próxima aos salões, elas estavam proibidas de ir até esta área também, mais uma das leis inexplicáveis deste reino.  “Cuide – se Tom, não quero saber de ladrões e malfeitores rodeando-te mais uma vez, como me contou da última vez. Acho que não preciso me preocupar enquanto isso, pois a flor já cresceu e você não guarda mais a semente. Daqui dois dias eu virei novamente de buscar”. A Águia Gigante ergueu as assas e saiu sob a chuva fina e fria.

Estava no local como combinado, e Tim não parecia. Sentiu-se só subitamente. O amigo não mais viria? E se parecessem aqueles ladrões famigerados novamente? Lutaria com todos, pois agora não tinha mais medo, ele tinha coragem, a flor poente era o que conferia isto ao garoto herói.  Quando ainda pensava nisso tudo, viu Tim chegando, com aquele sorriso belo e olhos brilhantes, a luz de guerreiro nato, agora conseguia definir o que não tinha feito antes, a flor poente tinha revelado por inteiro esta força interior, essa garra que Tim possuía, a mesma que Tom.

Os dois amigos abraçaram-se por um longo tempo, como se assim a saudade de tanto tempo se dissipasse. “Vamos, vamos Tom. Temos que ir pra casa, a flor poente está lá, linda como nunca”.

Ao chegar à casa de Tim, ele percebeu que o garoto morava sozinho como ele, mas havia outras casas ao redor da sua. “São meus guardiões, todos eles dizem que um dia eu farei algo muito especial, cuidam de mim desde que meus pais se foram”. Perdas eram complicadas, Tom mesmo sabia, pois ele tinha sido criado por Tanagus, da mesma forma, achou melhor não abordar muito o assunto. Queria apenas a felicidade que a flor lhe produziria. Subiram correndo as escadas que davam para a casa de Tim, que o levou correndo para o jardim e lá estava ela. Já era noite, mas ao redor tinha um brilho diáfano, de cor violeta e azul, pois era a cor que ela tinha no momento.

“Ela é linda, ela se tornou minha força. Olha que trabalho mais lindo que você fez, Tim. Me deixou extremamente orgulhoso”. Ele abraço forte o amigo e disse olhando em seus olhos “amanhã vamos começar seu treinamento”

Quando o sol nasceu, Tom que sempre era o mais disposto acordou Tim e eles começaram a treinar.Tim mostrou-se tão bom quanto Tom no manejo do punhal, ao levantar peso, ao atirar com as flechas. “Como pode saber isso tudo? Está melhor que eu, pronto pra um combate verdadeiro” Tim sorriu e respondeu “ nem eu sabia dessas habilidades, devem ser meus ancestrais guerreiros falando alto, eles já moravam aqui antes das pessoas chegarem para habitar essa terras, devo ter herdado o espírito de guerra deles”. Tom largou as armas e disse “ Não só isso, esses espírito se manifestou graças aos esforços que fez para cuidar da flor. Me conte agora, o que você fez para que ela vigorasse tão depressa?” Tim ficou calado nessa hora, era seu maior segredo, não poderia revê-lo assim. “Prefiro não revelar” “Mas eu tenho o direito, a flor não é apenas sua, tenho parte nela” Tim viu que se não contasse o amigo ficaria triste e desconfiado “ Eu apenas desejei força a você, que tivesse toda coragem, inteligência e astúcia para ser o herói que sempre quis ser, quanto mais sincero era esse meu desejo, mais a flor crescia”.

Era a prova mais bela de amizade e consideração que havia tido. Tom sentiu-se a pessoa mais feliz do mundo, naquele momento que durou segundos. “Obrigado, nunca irei te desapontar, nunca serei vencido diante destes perigos”.

No outro dia, Tim e Tom escolheram juntos combater ladrões e salteadores, estes malfeitores moravam no mesmo local. Enquanto Tim lutava com os ladrões, derrubando cada um deles com socos certeiros ou flechadas nas pernas, Tom corria e colocava tudo que essas pessoas tinham roubado em um grande saco e os dois fugiram dali. Entregaram todas as coisas para os cavalheiros do Rei, assim como disseram que todos os ladrões encontravam-se amordaçados, amarrados e presos no galpão que usavam para esconder as peças roubadas. “Garotos, vocês dois juntos podem ser invencíveis”. Eles se olharam e riram, juntos seriam poderosos e os maiores heróis do reino, só estavam começando suas jornadas.

Treinaram durante o último dia juntos, mas Tim não parecia satisfeito no final. “Juntos somos mais poderosos, você realmente tem que voltar para sua terra?” . “Sim, eu devo, Tim. Tenho deveres que me chamam, tenho que livrar-la do Dragão Vermelho, que é o maior mal que ainda a assola, antes disso não posso. Espero que compreenda, ainda quero lutar e ser reconhecido ao seu lado, mas ainda não é chegado o tempo. Você cuidará da flor poente para mim?”. “Eu vou tentar, eu sou forte acredite em mim, assim como acredito em sua bravura”.

Já não chovia mais, Tim foi levar Tom ao Porto do Cisne e a Águia Gigante já descia para buscá-lo. Abraçaram-se novamente, Tom olhou nos olhos de guerreiro de Tim, havia um brilho diferente, era uma lágrima. “Eu volto, seja forte, ainda temos uma imensa guerra pela frente, seremos aqueles glorificados no final. Não existe palavra em qualquer língua deste reino que agradeça sua amizade e seu cuidado com a flor e comigo”. “Obrigado por esses dias mágicos, Tom. Sentirei sua falta, parta em paz.”
A Águia Gigante levantou voou, o vento forte desprendeu ciscos e poeira do chão. Tim fechou os olhos e os protegeu com as mãos, afastou alguns passos e quando os abriu novamente, estavam turvos pelas lágrimas, mas mesmo assim ainda viu o amigo, que voava com a águia lhe acenando.

Dias depois, munido da força maior que tinha encontrado, Tom tentou enfrentar o Dragão Vermelho, foi com tudo, desde vez possuía uma lança e um escudo para lhe proteger, mas apesar de todo preparo e treino o Dragão Vermelho foi muito mais esperto, e quase o matou, despejou suas flamas no braço do herói garoto e o deixou ferido.

Como isso era possível? Ele agora não tinha absorvido toda a força da flor poente? Não sentia isso?

Havia algo estranho, pois há dias tentava falar com Tim e não conseguia.

Um medo terrível invadiu o coração do pequeno herói, alguma coisa tinha mudado em definitivo, ele sentia isso.





III

“Não venha mais até aqui. Não posso te iludir que sou capaz de cuidar da flor mais. Estou cansado de tudo isso”.

Estas foram as palavras que deixaram Tom desesperado, sem a flor não poderia ser o herói, não teria toda coragem suficiente. Em poucos dias ele entrou em desespero.
Tanagus vendo seu protegido sofrendo logo foi lhe questionar, quando Tom contou toda a história ele lhe disse “ E você está preocupado apenas com a flor? Sua coragem é mais importante do bem estar do amigo que diz amar tanto? Você pode ter dado a semente da flor poente para pessoa certa, mas passou a agir de forma errada”.

Tom percebeu nesse instante o quanto tinha exigido de Tim, o quanto era pesado para este garoto mais novo uma responsabilidade tão imensa.

“O clima perfeito faz a flor se abrir, mas também permite o surgimento de ervas daninhas que podem sufocá-la. A dúvida em si mesmo é como hera, infiltra no coração e destrói até mesmo a mais forte das muralhas”. Tanagus continou “sem saber, meu filho, você deixou mais poderes com Tim do que ele é capaz de carregar, e ele se exigiu, duvidou de si e começou a sentir mal, os sentimentos ruins podem ter danificado a flor”
A tristeza tomou conta de Tom. “Preciso vê-lo o mais rápido possível. Eu abdico de qualquer heroísmo em prol de Tim, ele não merece se sacrificar por uma glória pessoal”.

Tanagus sorriu e aprovou “essa é a verdadeira sabedoria de um herói, não se preocupar com seu reflexo na espada, mas com sua essência”.

O mago se levantou, pegou um pote antigo, onde havia muitas três sementinhas de cor azul. Tirou a tampa e com um pequeno encantamento apenas uma delas sai voando e foi até a mão de Tom, que a segurou forte.

“Rezam as lendas antigas do reino, que esta semente quando germinar, quando a flor dela abrir por completo, será capaz de apagar qualquer dor. Uma lenda mais antiga ainda, diz que uma semente em um milhão se transforma na mesma flor poente. Sinto muito lhe dizer, meu filho, mas pela tristeza que você sente neste momento, muito possivelmente sua flor pode já estar morta. Livre-se dos sentimentos ruins, e deixe a verdadeira alma de herói que há em você surgir e aceitar a efemeridade da vida. Lembre-se essa semente demora muito mais para germinar e só o fará se não se o inimigo de ambas as partes for derrotado”.

Com os olhos assustados Tom indaga ao mago “qual inimigo é esse?”
Tanagus volta sua face igualmente com medo, aquela de quem já enfrentou muitos inimigos e sabe que este é um dos piores, e diz “o cavaleiro da armadura negra, que atinge o coração com flechas de veneno, o rancor.”

Tom saiu correndo, colocou a pedra negra sobre a luz do sol, quando Tim apareceu, ele pode perceber a tristeza no semblante do amigo. “Vou te ver amanhã, esteja perto do Porto do Cisne”.Antes que Tim pudesse recusar ele rompeu o contato.
Pela manhã ele chamou sua amiga Águia Gigante e voaram para cidade capital. Em todo transcurso, Tom só pensava em aliviar o fardo de Tim, tira-lo daquela situação desfavorável, de enxergar aquele coração sereno de novo.

A Águia pousou e Tom disse “talvez eu demore o dia todo, mas isso não ficará sem solução”.

Correu para debaixo de uma grande árvore frondosa, longe da vista da Águia, ninguém deveria ver os dois naquele momento. Esperou por muito tempo, a agonia passou a invadir Tom. Por que Tim não tinha chegado ainda? Por que deixá-lo nessa dúvida cruel sobre seu bem estar? Não era justo, por mais que o fardo tenha sido pesado para Tim, Tom também não merecia sofrer. Ele não conseguia mais ficar sentado, não conseguia mais ficar em pé. Começou a socar a árvore, a chutar tudo que encontrava pelo caminho, pegou o punhal e começou a bater nas pedras, tirando faíscas. Nada atenuava a crescente dor, foi quando deu um longo gritou e começou a chorar. Chorou por seu orgulho ferido, por seu egoísmo, por sua falta de empatia para com os sentimentos de Tim, que não conseguira ser forte o suficiente para cuidar da flor.
Depois de alguns minutos, que pareciam uma eternidade, Tom levantou o rosto e lá estava a face igualmente triste de Tim.

“Por que você demorou tanto?”  “ Eu não tinha coragem, Tom. Como eu ia te contar o que aconteceu, como eu acabei me tornando fraco. Não queria me sentir culpado”. “Não há culpados nesta história, acredite em mim”. “Eu tentei eu juro, mas olha no que deu, olha o que a flor se tornou” Tim tirou da sua bolsa o que havia sido a flor poente, estava murcha, morta e negra. Ele virou o rosto para o lado, não queria ver a decepção do amigo, não iria conviver com essa culpa para todo sempre.
Tom tomou em suas mãos aquilo que outrora era belíssima flor. Seria dominado pelo pior dos inimigos, o que poderia se transformar no cavaleiro negro, o rancor? Mais uma vez chorou, não pela coragem e força que não teria mais vindas da magia da flor, mas pelo medo e angústia pela qual o amigo teria passado.

“Juntos seríamos invencíveis. Eu pensava assim, mas não consegui treinar sozinho, não consegui combater todos os males, eu precisava de você ao meu lado, me ensinando e orientando. A insegurança tomou parte, eu fui parando de deixar meus bons sentimentos fluírem, não correspondia mais à altura da flor. O azul foi escurecendo cada vez mais, e um dia quando percebi ela estava negra e eu entrei em desespero. Pensei que conseguiria reverter tudo, que ela poderia voltar a ter as lindas tonalidades, mas quanto mais eu tentava pensar em algo a culpa de ser incapaz de fazer tudo sozinho me invadia, não abria espaço para o bom, e ela foi morrendo cada vez mais. Eu não queria te contar, mas ao mesmo tempo não podia te enganar. Você imagina o tamanho da minha dor? Sua coragem e seu sucesso dependiam de mim, e agora suas chances se foram...”
Essa era a hora de romper tudo, de perdoar, de não deixar nada corromper. Tom não poderia ser fardo pra ninguém, onde houve amizade e energias belas não deveria reinar a raiva e o ressentimento.

“Eu sei meu amigo, era demais pra você carregar. Só me abrace, deixe tudo ir embora” “Eu só precisava da sua compreensão, Tom, só precisava dela” Se abraçaram novamente e quando isso aconteceu a flor começou a se mover e a brilhar. Em seu íntimo Tom sabia o que fazer, esmagou-a toda em sua mão, transformando - a em cinzas e soprou pra bem longe, as partículas do que outrora foram um ser vivo se foram, completaram seu círculo de existência, belo e efêmero.  Elas foram subindo e subindo, não seguiam a direção da brisa do mar, iam pro céu, era final de tarde, com muitas nuvens que subitamente foram se movendo como por mágica, e o céu apareceu, e foi quando as lindas cores do pôr – do – sol, amarelo, laranja, vermelho,rosa, roxo, azul e por fim na parte mais alta o negro da noite que se aproximava, as mesmas cores da flor poente.

Os dois garotos heróis sentaram-se e olharam para as montanhas, o lar do herói mais velho, Tom, enquanto o herói mais novo disse “Eu poderia ficar assistindo esse espetáculo pelo resto da minha vida, ao seu lado, meu amigo”.
Tom sorriu para ele, e neste instante colocou a semente, cuidadosamente embrulhada dentro do bolso da calça de Tim, este estava tão absorto na contemplação das cores que nem sequer notou.

Levantou – se e ficou mais uns minutos ao lado do amigo, mas sabia que era de um adeus definitivo “ Tenho que partir, Tom. Meu povo, e minha cidade ainda precisam de mim” . “Mande – me notícias”, disse Tim timidamente. “ Eu preciso readquirir minha coragem, minha força e minha valentia, e agora elas tem que brotar de uma outra fonte. Isso levará tempo, quando conseguir, tenha certeza de que nos falaremos novamente”

Tim e Tom caminharam silenciosamente até onde estava a Águia Gigante. Abraçaram e disseram adeus.

Tim sorria por ter feito o certo, por ter sido honesto, por ainda preservar a amizade com amigo. Tom sorria por ter demonstrado coragem, força e por ter vencido o maior de todos os inimigos, o Cavalheiro Negro do Rancor.

Neste momento sentiu o vento suave lhe beijar as faces, sentiu o céu, sentiu o frio que mais uma vez começava em sua terra. Sentiu a esperança daquela semente que deixou no bolso de Tim, sabia que ela era uma entre milhões, e que um dia ela germinaria, pelos motivos certos e não pelos egoístas de outrora.

Sabia em seu íntimo, que agora era páreo para o maior inimigo de sua cidade, amanhã lutaria mais uma vez com o Dragão Vermelho. 


Agradecimentos a Antoine de Saint - Exupéry  por me ensinar que um livro de poucas páginas pode ser um dos mais belos e sábios. 

Conto redigido ao som de Tron Legacy Soundtrack - Daft Punk 






 

Quero Ter Vergonha


Quero ter vergonha dos meus exageros imprevisíveis, dos meus acessos sentimentais que tem se transformado em frases verdes, que em minha pressa não comedida, escapam do pomar da minha mente e logo saem trôpegas, coitadas, mas saem.

Vergonha dos meus travesseiros, que já pedem para que eu não os abrace mais e não mais os abrace, já estão se afogando com todas minhas carências e choros sem lágrimas. Essa vergonha que minha esperança grudou na carne, vergonha dos olhares e dos juízos. Se aparento ser tão seguro, por que as ventos brincam comigo como fazem com cata-vento?

Meu rosto precisa ficar rubro com os cantores e escritores que me definem, pois cada dia eles sobem mais um degrau da escadaria do clichê. Vergonha deveriam ter as pessoas que os citam sem assimilá-los, essa pseudo – intelectualidade das redes sociais. Essa vergonha alheia, tal como entidade de candomblé, se não baixa em quem deve, baixará no mais próximo.

Anseio por essa vergonha prazerosa promovida pela ressaca, dos casos que nos permitimos ter, de quando observamos hematomas de origem desconhecida, daquela mais uma dose que nunca tem fim.

Vergonha das cartas com corações, das três palavras mágicas que fodem com tudo, dos apelidos carinhosos, do futuro disso tudo que, como sempre, é duvidoso.

Vergonha dessa vida de poeta de moeda, cara encantador, coroa marginal.

Vergonha, esse sentimento daqueles que ocultam uma necessidade humana tão básica através de uma imensa parede, feita da liga mais resistente: arrogância e falsa indiferença.

Quero ter vergonha de roubar frases e idéias literárias e de apenas encobri-las com meus devaneios. Vergonha dos textos que escrevi no mês passado, vergonha que terei daqui uns meses quando ler novamente estas frases exageradamente verdes, que meus pensamentos turvos e desenfreados, neste momento, consideram maduras.

(Insônia, 31 de maio de 2011, 00:15, ao de Mal Nenhum - Cazuza)


domingo, 29 de maio de 2011

In This Dusty Rabbit Hole 




Vídeo de iamamiwhoami - ; john, 2011


       Que meus sonhos sejam como este vídeo com os raios solares tímidos e sons de sintetizadores que me animem a acordar cantando, para mais um ciclo de existência.
Rabbit Heart feat. Hearts A Mess


Eder Sallez. Featuring Poético - Metralhadora. Nanquim e Aquarela. 20,5 x 29, 0 cm. 2011. 
( Desenho inspirado no texto "Metralhadora" de Fabiano Alexandrino.)



Metralhadora 


Procure você acha
Ache você usa
Use você compartilha
Compartilhe você se mostra
Mostre, mostre
Mostre o que você tem
Mostre pra que você vem
Mostre a cara que tem
Pegue o que vão te dar
Use aquilo que dei
Ame aquilo que mostrei
Me devolva com um pouco de você

Texto improvisado na aula de comunicação e expressão, na noite de quarta-feira dessa mesma semana. 


Fabiano Alexandrino  -  http://heartsamess.blogspot.com

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mentiras


Shirley Manson no vídeo "Why do you love me?" 2005



Acordo com mentiras novas, todas as manhãs
Essas verdades inventadas
Repudiadas como prostitutas
Mentiras do âmago quando diamantes
Metamorfoseiam- se em verdades
Verdades que se tornam bem querer
Base para a construção do amor
Transferi estas inverdades para minhas falas
Para meus versos, prosas e desenhos
Mentir é permitido apenas aos artistas
Estas mentiras criadas para o deleite dos espectadores
Que arrancam risos, aplausos, admirações e lágrimas
Mentiras, filhas da Inspiração.

Máscara Veneziana 

Para URB


A Lua. Carnaval em Veneza - Lorena Barbier. 2011



Mentes para ti mesmo deste que passou a seguir este caminho
Quando preferiu aprisionar tua bela essência em uma gaiola de ferro em brasa
E colocou sua máscara veneziana de falsidade
Andas pela rua ao lado de tua cadela sarnenta,
Cadela com a boca espumante de raiva,
Cadela que te guia, como o cego que tornastes
A cadela Hipocrisia
Não há vestígios de raio de sol em teu caráter?
Já arrancastes de mim lágrimas ardentes
Com tuas palavras de nocaute
Hoje há um distanciamento profundo
Que reina dentro dos condados de meu pensamento
Onde a dúvida passeia placidamente
O dragão das flamas impróprias e inconvenientes
A princesa sendo comprimida por paredes cheias de lanças letais
Será que és o dragão ou a frágil princesa?
Seu carnaval está por um fio
Muitos já vêem a verdade em seus olhos
Mesmo estes usando tua máscara como cobertor
A festa está acabando, todos estão partindo
Não haverá nem policiais para te conduzirem ao lar
Sentarás na calçada, tirando tua máscara veneziana?
Expulsarás esta cadela feroz de teu lado?
Tua soberba será a bola de ferro em teus pés quando pisares em falso na gôndola?
Sentes solitário na calçada coberta de vômito de outros
Tire tua máscara, e execute o ritual purificador do choro
Observarei, vestido como o mais lindo dos Pierrots
Pois não bebo da taça do rancor
Este veneno que todos tomam e esperam que outros morram em seus lugares
Tomo o líquido incolor da indiferença, apenas
Vermelhos, azuis, amarelos e verdes, meus hematomas de teus nocautes se tornaram
Talvez uma mão surja em tua frente
Talvez minha mão cansada, por ti repudiada
Tentarei com todas as forças acreditar no teu melhor
Mas se não quiseres, mesmo assim, partirei feliz
Enquanto mergulharás definitivamente no mar de tuas tristezas
Nesta estreita e obscura viela de Veneza que passou a ser tua história.

domingo, 22 de maio de 2011

Relíquias 





Eder Sallez. Lúthien Tinúvel. Desenho. 29,7 x 21,0 cm. 2006.


Eder Sallez. Sam, o Lindofilho. Desenho. 29,7 x 21,0 cm. 2006.


Eder Sallez ( Desenhos originais e idéias) e Caio Lamas ( Arte Gráfica). Brasão dos Portos. 2007. 




Eder Sallez. Série Valkírias: Brynhildr. Desenho. 29,7 x 21,0 cm. 2007.



sábado, 21 de maio de 2011

Carbon



 Garoto Com Lírios - Barão Wilhelm von Gloeden. 1900's


Nada mais és que terra, neste momento.
Deixou para trás este ar distante
Onde teus olhos miravam?
Nas bocas que não beijaram-te as orelhas?
Nas línguas que não deslizaram em teu pescoço?
Nas mãos que não te prenderam pela cintura?
Em verdade crua e esfolada, miravas tua sina
Pobre ragazzo
A guerra sugou-te para o seio negro
Deu-te o rubro ao invés da seiva de prazer
Como estavas farto, como de costume
Posso ver-te correndo desesperado
Projéteis  brilhando ao pôr – do – sol
Teus lábios abrindo delicadamente para um beijo
Beijo famélico, sufocante, tentador e mortal
Pobre ragazzo
Quando teu sangue fugia
Lembrou-te o frescor da brisa
O calor do sol
O abraço de teus companheiros
Todas a sensações escritas nos desejos de teu corpo nu
Ficou excitado neste momento
A Ceifadora lhe deu as melhores recordações
Tentastes te defender com os lírios brancos
Mas agora eles jazem ao teu lado no veludo vermelho
A metralhadora fora mais esperta
Pobre ragazzo
O Destino nunca respeitou a Beleza
Corações puros nunca deveriam ir para os campos de batalha
Ainda assim ele permitiu a sobrevivência de tua perfeição
Fostes imortalizado, fotografado como santo
E ainda andas despertando emoções físicas em outros jovens
Miravas também teu legado
Pois agora ainda não és diamente
É apenas carbono
Pobre ragazzo

 (Insônia, 21de maio, 00:19h, ao som de Carbon Kid – Placebo)


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sinto Falta de Coisas Que Nunca Vivi


Sinto falta da minha bravura de cavaleiro, quando dediquei a minha vida em busca do Graal e disputei o amor de uma donzela em um letífero combate. Época em que o amor era algo nobre e as princesas me inspiravam virtudes e canções.

Não sei onde está aquela sensação de espanto, quando, em uma nau portuguesa, avistei pequenos e inocentes habitantes de uma terra quente e selvagem.

          Onde foram parar meus copos de absinto? Grande Belle Époque.Ainda queria ver a cara de desdém dos críticos para minhas pinceladas quebradas, minhas cores colocadas lado a lado na tela, onde os olhos de longe as misturariam e não eu mesmo na palheta, em que lugar estão os senhores críticos neste momento? Aposto que correram para meu café parisiense favorito, roubaram meus interlocutores e colocam-se a discutir filosofia e literatura. Sentados, justamente, na minha mesa favorita. 

Queria ver de novo os rostos assombrados diante das primeiras fotografias. Esse mágico processo químico da escrita da luz. Depois de anos, os próprios anônimos poderiam ser seu objeto de contemplação através de uma objetiva e não mais de uma subjetiva. Ah, como eram lindas essas caras de alegria e de tristeza ao se verem transferidas para um papel, prata para as partes de luz, o branco, sem sensibilidade para a luz, o preto, mero processo químico para simples almas.

O encanto dos sorrisos verdadeiros dos anos 50, das estrelas do cinema, dos vendedores simpáticos, a falta desta visão desencanta meu espírito. Sorrisos que chegaram aos cinemas, deixando uma platéia deslumbrada, sorrisos que abriam portas, sorrisos que aos poucos foram roubados pelas campanhas publicitárias e indústrias culturais, perdendo a cor de sua aura.

Sinto falta da textura do gramado, quando me deitei farto do amor livre, depois de ter beijado mil bocas de ambos os sexos. Sinto falta daquele dia que tirei uma flor que enfeitava meu cabelo e coloquei na ponta da arma que o soldado mirava para meio peito, esta morada de paz e amor.

Não sei que fim levou meus jeans e all stars, muito menos meus discos e fitas cassete. Se alguns de vocês, leitores, os encontrar em alguma casa, mandem - me um telegrama com informações precisas, irei pega-los assim que possível.

Longas cartas, não recebo mais.  Foram trocadas pela tecnologia. O susto dos e-mails e do telefone celular também já passou.

Não tenho mais nada para sentir falta? Para produzir esta explosão assombrada e intimamente copulada com a magia, que após sua satisfação deixa este vazio unicamente preenchido pela saudade?

Posso sentir falta de personagens literários, que foram mais significativos que muitas pessoas reais. Talvez eu sinta uma saudade cultivada e projetada em cima das emoções destes seres das letras, talvez eu pague e leve meus filhos para observarem o espetáculo de uma pedra de gelo, ou viaje para um país onde todas as pessoas ficaram cegas como por bruxaria.

Passarei a sentir falta do futuro ainda não vivido, dias de um futuro esquecido. Saudades do dia em que minhas retinas irão deparar com as pessoas que viajam por teletransporte, quando eu ouvir uma criança perguntar em sala de aula “professora, o que era o lixo?”, quando eu parar no meio da rua, olhar para uma imagem de um cosmonauta projetada holograficamente no mais alto prédio e o ouvir dizer  “o novo planeta possui três luas azuis”.  Sentirei falta daquele dia em que me sentarei do lado de um homem simples e ele me disser “criei tudo isto, agora me fiz carne”. Eu no fundo de minha inocência perguntarei “por que então abandonou a serenidade de seu plano metafísico?” e ele me responderá “porque tal como você, meu filho, sentia falta de coisas que nunca vivi”.

(Insônia, 20 de maio, 00:51h, ao som de Time to Pretend – MGMT). 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Do Otimismo

Perdi uma coisa que amava, mas ainda amo um milhão de coisas. 

sábado, 14 de maio de 2011

Sexta-feira 13

Quando chega o final da saga semanal
Logo o desejo se debate em meu peito
Sacudindo minha prisão sem paredes
Agitando meu exílio intelectual
Neste instante quero todos os prazeres
As bebidas mais intensas
Os cigarros mais letais
As drogas mais amargas
As pessoas mais inteligentes e as mais fúteis
Quero pisar nos olhares
Ignorar as atrações
Quero os lábios mais tenros
Como flores de uma planta carnívora
Os abraços firmes de hera
Os sons ébrios e cósmicos dos sintetizadores
Flashes, mãos, suor e desejo
Depois aquele doce e ácido vazio
Vazio que hipocritamente dizemos não sentir falta
Ainda quero ser consumido por toda essa imundice
Que meu espírito amoral vê como diversão
Viver a outra metade de meu eterno dualismo
Dar descanso a um lirismo infindável
Abrir espaço para uma sordidez cristalizada
Mas os grilhões em rosas vermelhas
Ainda prendem esta fera orgástica



(Sexta- feira, 13 de maio de 2011, 23:59 ao som de Turn It On – Ladytron)

quinta-feira, 12 de maio de 2011


Quando Me Roubam A Música


Quando tiram este meu íntimo momento
Quando a alegria de dançar vira tormento
Odeio quando me roubam a música
E tomam pra si como única

Não precisa me perdoar a franqueza
O que fizestes foi de tamanha fraqueza
Salvo novamente a melodia roubada
E trago-a para meus rodopios onde esteve guardada

Ninguém terá mais acesso a estes tesouros
Que coroam minha alma campeã em louros
Ouça outras músicas em outros ventos de outros carros
Já o que terás de mim agora é a fumaça de mil cigarros

Ontem e hoje são minhas as melodias
De décadas, anos e muito mais que vinte dias
Novamente elas me beijam e abraçam
Novamente é só pra mim que elas dançam


(Insônia, 12 de maio de 2011, 01:15 , ao som de It’s My Life – Talk, Talk e It’s My Life – No Doubt )

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Texto Azul 


Eder Sallez. Auto-Retrato do Azul. Fotografia/Acrílico e Carvão sobre Papel. 29,7 x 21,0 cm. 2011. 


            O Azul é a cor do otimismo. Quando disse isso a dois amigos, logo eles foram categóricos ao dizer que azul remetia a coisas tristes.

De imediato parei para pensar: por que classificar essa cor como melancólica? Em inglês quando alguém está desiludido com a vida logo diz “I am blue”. Picasso considerava o azul como a cor perfeita para representar a tristeza, ficando famoso por sua Fase Azul, onde concebeu a solidão, a morte e o abandono através de pessoas em tom azul, assim como o fundo das obras. Estes quadros são reflexos de sua época mais precária, quando chegou a passar fome, talvez até disto tenha resultado a expressão “azul de fome”.

A cor é a maravilhosa capacidade que os seres vivos têm, através dos olhos, de captar a reemissão da luz de um objeto. Cada organismo é um complexo e exclusivo emaranhado mágico de células, o que viabiliza o milagre da existência única. Alguns seres serão capazes de enxergar um maior número de cores, ao contrário de outros. Isso enfatiza o processo fabuloso de subjetividade da captação das cores, rompendo os padrões físicos em que elas se manifestam

O Azul é uma das três cores –luz primárias, e dentro das cores primárias de pigmento, assume o papel do ciano, resultado da sobreposição deste com o magenta.As cores –luz  originaram o sistema RGB (Red, Green, Blue), pois nesta ordem, são as cores captadas pelos olhos através das células chamadas bastonetes. Noventa e quatro por cento para as cores vermelha e verde, restando apenas seis por cento para o azul. A dificuldade da percepção desta cor fez com que os tons de vermelho, verde e marrom prevalecessem nas pinturas antigas.  Será que carregamos em nós mesmos uma barreira para a captação do azul? Pelo que tudo indica possuímos uma grande limitação sensível para esta cor. É natural do ser humano ter certo temor por aquilo que não compreende totalmente, e este sentimento pode ter inserido aos poucos dentro da cor, como pequeninas pestes que atacariam uma plantação de Blue Berry.
Os indianos e os egípcios foram os primeiros povos a conseguir uma representação pictórica do azul. Os indianos conseguiram produzir um tipo de corante natural de cor azul, provindo de uma planta chamada índigo, o que gerou o azul índigo. Os egípcios, que sempre estiveram ligados ao mistério e ao divino, descobriram que o pó oriundo de uma pedra semipreciosa chamada lápis –lazuli , dava origem a um pigmento azul para a têmpera. A própria pedra era de cor azul e representava o esplendor real, assim como a segunda parte do seu nome, lazuli, é a forma derivada do latim lazulum, que veio do árabe lazward, que veio do persa lāzhward  e que veio do sânscrito Raja Warta, que significa “anel, círculo, vida do rei” (talvez uma referência ao deus Krishna, que era de cor azul). Lazuli, que antes era um substantivo, caiu nas graças das mudanças lingüísticas e se tornou azul por causa da relação direta com a pedra, e assim no inglês temos azure (para o ciano, pois o blue, o azul inglês, veio do francês bleu  que veio do germânico blau), no italiano azzurro e nas línguas irmãs, espanhol e português (que outrora eram uma língua só, o galego-português) o azul.

             Esta cor encantadora percorreu toda uma histórica lingüística e com sua tonalidade acabou por criar palavras para habitar os diversos vocábulos humanos. Em terras brasileiras, os índios tupis possuíam a palavra oby para designar tanto a as cores azuis quanto verdes, pois para eles essas cores constituíam uma única, existente em toda natureza, conseqüentemente sagrada.

Na Roma Antiga o azul era considerado algo fora da realidade, uma cor estrangeira, devido à dificuldade de reproduzi-la, por fim acabaram associando-a aos bárbaros, pois a maioria deles possuía olhos azuis. Na Alemanha Medieval a cor azul era de exclusividade dos servos, provinha de uma planta chamada ísatis que precisava da fermentação da urina para produzir a referida cor, todavia descobriu-se que o álcool potencializava a transformação, e os tintureiros passaram a ingerir bebidas alcoólicas para urinar nos tecidos, dando origem a expressão “Blau Werden” que significa “Ficar Azul”, ou seja, ficar bêbado.De certa forma o ocidente sempre emite um peso pejorativo aos conceitos que não assimila por completo. Mais uma vez percebemos os maus tratos ao azul, pois tantos os bárbaros quanto os servos estavam ligados a condições precárias de moradia e vestimenta, termos depreciativos que mais pareciam um punhado de nuvens negras para cobrir o céu.

No início do Renascimento, quando a têmpera era principal técnica de pintura, a pedra de lápis-lazuli, vinda do Oriente a altos custos, chegou a custar mais caro que o ouro, tornou-se popular entre os pintores, uma vez que originava a cor Azul Ultramar que em pouco tempo também se tornou a mais cara do mercado.  Havia contratos entre os pintores e os consumidores das pinturas (padres e grandes comerciantes) estipulando as medidas e as tonalidades do azul ultramar. O azul atingia um novo terreno, gerando uma conotação de exotismo,reforçando sua representatividade celestial, ligando-o definitivamente ao misterioso e divino, sendo aplicado às vestes de Cristo, Maria, santos e outros personagens principais dos quadros. Em pouco tempo o azul também seria cor da nobreza, gerando a expressão “sangue azul”. O ocidente passou a reverenciar o azul por seus atributos raros e únicos, era uma ascensão social, ele recebia uma majestosa coroa que lhe conferia imponência divina.

Quando a capacidade do artista passou a ser mais valorizada que a qualidade tonal, assim como a pintura a óleo passou a ser mais usual por sua durabilidade, o azul ultramar perdeu um pouco sua importância, cedendo espaço o Azul Cobalto, que apesar de imensamente tóxico e caro, dominou o espaço. 

Agora uma das cores mais visadas e belas do mercado também era a mais mortal, ironias do destino à parte, quanto mais era utilizada na pintura mais consumia a energia vital do pintor, era o azul tomando parte de seus corpos, envenenando-os aos poucos. A cor não tardaria a entrar no campo da morte e da loucura, caindo mais uma vez pelas vielas sombrias das cidades européias. Mas ainda havia um grupo de homens que desafiariam o perigo de lidar com o azul, homens bravos que iriam expor suas idéias cromáticas, procurando não deixar que ele fosse renegado como no passado.

Os Impressionistas adotaram, nada mais nada menos que o azul como sua cor favorita, uma vez que sua capacidade de percepção pelo olho humano é muito reduzida, captar as nuances desta cor era um exercício dificílimo, mas era capaz de aguçar o olhar dos pintores. Quase na mesma época, surge a Teoria das Cores de Goethe, onde ele diz que o azul seria o resultado da fuga da luz de nós até a escuridão.

O maior impacto moderno relativo a essa cor, foi quando o Iuri Gagari, o primeiro homem a ir ao espaço a bordo da Vostok 1, disse a célebre frase “ A Terra é azul”.

Depois de todos estes dados técnicos e históricos ainda me pergunto: por que associar esta cor à tristeza?

Dentro da própria Teoria das Cores, o azul assume papel de purificação, de expulsão de forças negativas, favorecendo a amabilidade, a paciência, a serenidade e a busca pela verdade interior. O azul favorece o estado contemplativo e meditativo, onde surge a criatividade e desaparece o stress, cedendo lugar à harmonia,a paz e a ordem. Quiçá os sentimentos de frieza, depressão, monotonia e isolamento associados ao azul, provem de pessoas que não conseguem manter suas contemplações balanceadas, deixando-se levar pelo lado pesado que há em todas as sensações e sentimentos.

Quem nunca sentiu aquela alegria infantil ao ver o céu todo azul depois de três semanas incessantes de chuva? Quem não ficou tranqüilizado ao respirar a brisa do mar e observar a sua imensidão azul? Quem não se tornou um pequeno ponto ínfimo diante as grandezas das montanhas que se transformam em azul no horizonte? Quem algum dia não se deixou hipnotizar pela beleza exótica de um par de olhos azuis?

Enquanto algumas pessoas se perdem no lado melancólico do azul, eu prefiro valorizar a raridade da ararinha azul, observar o oby da bandeira brasileira, lambuzar meus lábios de mirtilo, visitar cidades de nomes azuis, admirar o encanto translúcido de uma safira, pensar nas pessoas que lutavam por “Liberté, Egalite, Fraternité” guiadas por uma bandeira que tinha o azul como uma das cores, me enamorar com a luz suave da segunda lua cheia do mês chamada Blue Moon, me inspirar na garra de vencer da Squadra Azzura, interpretar a lenda mística da Rosa Azul, me enriquecer com os azuis clarinhos das paredes Rococó de Versailles, viver as dores e paixões que ainda estão presentes na Casa Azul de Frida Kahlo, me perder no azul misterioso da Noite Estrelada de Van Gogh, sentir a vida nas obras impressionistas que o azul cobalto sugou de seus pintores, deixar as mudanças surgirem com Urano e sua cor azul astrológica, me embriagar no estilo Blau Werden ao som de Djavan. Se por ventura, depois de tudo isso eu vier a chorar, que eu faça, mas minhas lágrimas serão azuis como as de Bat For Lashes em Daniel, lágrimas de alegria.

Expurgo toda essa ligação triste para esta cor mágica.

Quero correr pelo verão que o azul representa, o Império do Sol, onde não há opressão, apenas a liberdade, onde meus pés possam sentir a areia molhada e minha alma olhar para a vastidão do mar e para a grandiosidade do céu, assim serei abraçado e protegido de todo alvoroço e caos do mundo moderno. Este é o maior presente da cor do espírito, do lirismo, da filosofia e do otimismo. Essa cor fabulosa que habita a fronteira entre o ar e água.

Saibam que nos meus melhores dias, sempre estarei vestido de azul e isto será meu maior escudo na guerra contra a tristeza.


Domingo, 08 de maio de 2011, Dia das Mães, às 23:00.



Agradecimentos:

- Google e Wikipédia
- Amigos que adoram discutir sobre a “Filosofia das Cores” 



Playlist Azul  (Inspiração para escrever)

My Cabal – School Of Seven Bells
Walking On A Dream – Empire Of The Sun
Everything With You – The Pains Of Being Pure At Heart
Age Concert – New Order
Starlight – Muse
Foundations – Kate Nash
Daniel – Bat For Lashes
Azul – Djavan
Soul Meets Body – Death Cab For Cutie
Heart’s on Fire – Cut Copy
Dog Days Are Over – Florence And The Machine
Self Machine – I Blame Coco
Time To Pretend – MGMT
11th Dimension – Julian Cassablancas
Relator Pete Yorn & Scarlett Johason 
Lust For Life – Girls 
Summer Marsheaux





sexta-feira, 6 de maio de 2011

Dos Casamentos

Não pretendo me casar, mas a vida não é justa. Não é mesmo? 

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Dos Finais 

Quando a vida mútua deixa de ter importância para ambos, passa existir apenas um vazio de expectativas.
Das Invasões




Meu Lirismo há muito invandiu a fronteira da Política. Não há acordos diplomáticos.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Rostos que conheço e desconheço


Sonho com rostos que conheço e desconheço ao mesmo tempo
Acordo nostálgico, inquieto e com saudades
Quem são estes seres que me fazem feliz?
Que me beijam suavemente?
Que deixam seu amor fluir por estes campos tênues e cinzas
Em meu íntimo conheço cada um profundamente
Sei que caminharam ao meu lado
Viram pores – do - sol
Colheram marcelas na madrugada
Recitaram poemas
Todos enobreceram suas almas para estarem ao meu lado
E o que fiz para merecer tal?
Estas pessoas estão felizes em apenas me abraçar
E observar por tempos infindáveis as montanhas diáfanas
Querem apenas me deixar sorrindo
Quando isto acaba, as cores de minha realidade mudam
Vejo-me acordado abraçando os travesseiros
Nada mais
Quem são estes rostos sem linhas e idade?
Até quando irás brincar comigo, Morpheus?
Se algum dia na Grécia Antiga esqueci minha oferenda
Castigue –me com pesadelos e não com fantasias
Ou não me deixe acordar
Já tenho a maldição de sonhar acordado
Afortunado então, devo existir nestes momentos
Experimentar a efemeridade de cada rosto enigmático
Rostos que conheço e desconheço
E que criam emoções até o meio dia.



 Das Transformações


Com os cacos de vidros que jogastes aos meus pés, construí um mosaico cintilante e colorido.  

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Borracha


Sei que você está camuflado em algum ponto das minhas memórias. Quase um ano que nos conhecemos e você se infiltrou por completo, tem medo de sair que eu sei, sempre dá suas mordidas e logo depois vem soprando, como se isso fosse capaz de diminuir sua infração, ou suas fantasias comigo, mas agora eu tenho a arma perfeita para isso.

Ontem adquiri uma borracha que me permite apagar memórias e advinha qual delas será? Passando pelo ponto onde te aprisionei a sete chaves, você não está mais. Para onde foi? Não importa, sei que vou seguir seu rastro e apagar de vez sua imagem nebulosa.

Começo a caminhar pelo corredor de minhas memórias e vejo seu vulto fechando uma porta. Justo esta recordação? Abro e saio em seu encalço. Meu primeiro aniversário, lá está você se escondendo atrás do bolo, entre as criancinhas. Covarde, eu sempre soube disso. Não posso usar a borracha, pois posso apagar pessoas que naquele instante contribuíram para ser quem sou agora.

Você tem ciência do seu plano, seus olhos de predador me sorriem desafiando. Afasto devagar enquanto você sai correndo das crianças que começam a cantar os parabéns. Tinha me esquecido da magia deste momento de alegria infantil. Sou tomado por um momento de estupor, mas não posso me deixar dominar bela beleza do passado, neste pequeno ínterim, você retorna ao corredor e pula para outra memória.

Vejo a porta bater, qual será agora? Ah, mas ele está se espetando todo nas roseiras da vovó. Eu estou ali olhando para baixo e minha tia tentando me fotografar. Há um carro estacionado perto, uma fita cassete passando, The Cure, claro. A música me contamina, a borracha treme em minhas mãos, e você mais uma vez sorri desafiadoramente, equilibra-se em um pé como o mais intrépido dos arlequins e começa a cantar a música que está tocando. Canta para me causar cólera e sabe que consegue, conhece tão bem a letra. Você se exibe, não viveu esta época, mas cultua tudo que dela surgiu. Eu me deixo levar pela melodia e quando percebo, já escapou novamente.

De propósito você deixou cair uma caneta que carregava em seu bolso, perto da outra porta onde entrou. Uma sala cheia de pessoas, todas concentradas diante de uma prova, um vestibular onde estou absorto, e você bem ali do lado, quase encostado em mim, acho que até me soprou algumas questões de português que eu tinha dúvida. Não me venha com esse olhar e sorriso de canto de boca, não há mais nada nesta sala em que você possa usar a seu favor, tenho a borracha em mãos. Agora sei como é andar pelas memórias, passo invisível por elas e ainda posso analisar cada uma, tirando novas conclusões a respeito de tudo e se quiser posso apagar as indesejadas, para isso que criei esta borracha.

Todos os candidatos nervosos, fazendo as questões sem muita concentração, e eu me vejo no canto, bem quietinho, prestando atenção em cada pequeno detalhe da prova, sabendo que mais uma parte do meu destino estava sendo traçado naquele momento. Foi quando me perdi e você escapou. Não dá pra acreditar que mais uma vez não consegui, me perdi em pensamentos e observações e lá foi você se aproveitando de tudo.

A última porta, não poderia ser diferente. O lugar onde nos vimos pela primeira vez. Depois de algumas cervejas você está caminhando comigo, estamos apenas conversando, eu na minha inocência parei, enquanto você avançou e me beijou. Beijo doce e rápido que me fez sentir amado e que não se repetiria mais. Eu sento na calçada do outro lado, vendo nós dois nos afastar e neste instante você chega e pousa sua mão forte em meu ombro, pressionando e me transmitindo força. Você já não ri mais, com um movimento de cabeça me pede para levantar, me encara duramente nos olhos, e recebo seu forte abraço, um último adeus.

Quando você me coloca dentro do ônibus é o fim para nós dois.

Não há resistência alguma de sua parte, era isso que você queria me mostrar, sua cara de desapontamento quando eu parti, pois era algo impossível de se manter, não poderíamos nos ver e nem nos envolver. Nesse instante percebo que não estou mais em minhas memórias, mas dentro de uma sua, você pulou de uma porta a outra para me confundir e me levar para seu mundo. É aqui que tudo deve terminar, não é mesmo? No seu campo, para que você sempre tenha as rédeas da situação. Antes de tudo lhe dou o último e intenso beijo de despedida. Você abaixa os olhos e o rosto, eu sei o que devo fazer, pego a borracha e começo a apagar o seu rosto, lá se vai seu sorriso irônico e confiante, seus ombros e com eles perco o local onde sempre sonhei em repousar, mãos que me tocaram e transmitiram força e pés que pisaram em meus sentimentos inúmeras vezes. Acabou.

E agora me pergunto: quem era você mesmo?